terça-feira, 17 de junho de 2014

LIVROS E CONHECIMENTOS

Meu pai, Oldegar Franco Vieira, homem reconhecido, de vastíssimo conhecimento, era capaz de apresentar um resumo comentado dos inúmeros livros que conservou em suas estantes, até bem próximo do seu fim.

Na minha adolescência, e do meu irmão, éramos estimulados ao acesso indiscriminado a qualquer obra que tinha espaço nas diversas estantes da casa. Ocupavam o “gabinete”, extrapolando para nosso quarto, o dele com minha mãe, os corredores, além de invadir, por vezes, até o quarto da auxiliar do lar, sem contar que seu carro nunca deixava de dar abrigo a, no mínimo, três ou quatro volumes além de muitos papeis de trabalho escritos por ele ou por seus alunos.

Era, sem dúvida um acervo de livros e conhecimentos respeitável que transitava por temas os mais variados, predominantemente humanísticos, com foco jurídico, de modo destacado.

Para uma idéia da diversidade, ainda conservo dele um livro encadernado, um “Receituário de Homeopatia” de John H. Clarke, com algumas notas manuscritas. É um símbolo que faço questão de conservar. Junto a isso, estão outros da autoria dele, especialmente os de poesia. Haicai, tipo de gênero japonês cujos poemas se limitam a onze sílabas em três estrofes que ele concebia com mestria. Reflito: Como alguém, com incrível facilidade, sintetizava, precisamente, idéias tão amplas como as poéticas? Era necessário que, além de criatividade e sensibilidade incomuns, domínio das palavras e outras formas de expressão do idioma.

Assim era o meu pai, de quem herdei, entre muitas outras coisas, o amor pelas palavras e formas de expressão escrita. assim,  essas poucas relíquias são, inalienáveis, principalmente por valor sentimental, motivos simbólicos.  Algo que ficou da nossa afeição.

Dou o maior valor a quem escreve com clareza, usando palavras precisas,  nos contextos adequados. Admiro e modestamente procuro imitar, tentando algum dia, chegar a um melhor termo.

Esse hábito de colecionar livros em bibliotecas particulares, até certo momento, tinha a sua justificativa fundada no fato que, a memória humana, episodicamente, falha para alguns, sendo uma traidora nos momentos da maior necessidade, como é o meu caso. Quantas vezes me ocorre uma ideia, ou traços de lembrança, ou mesmo uma imagem, com sabor de “deja vu” (Traduzindo do francês para o português brasileiro: acho que já vi isso em algum lugar!). Sei que aquilo não é de minha autoria exclusiva, e para lastrear citações, me ponho a procurar a origem,  com base em lembranças periféricas e esparças. Então, eram as bibliotecas, excelentes auxiliares para cobrir essas “lacunas”, pois, às vezes, a simples imagem do dorso de uma obra já lida anteriormente, tinha o poder de aclarar nossa memória, ou nos dizer:"Oi cara, lembre-se de mim, o que você procura, está aqui".

Segundo meu irmão, Fernando Tolentino, por outro lado, aprisionar livros, dentro de nossas casas, (juntamente, com os conhecimentos neles contidos), restringe um compartilhamento mais amplo, com a sociedade. É preciso libertá-los, Concordo em gênero, número e  grau!

Não vou me ater a casos de pessoas, que colecionam os livros (até algumas imitações deles feitas em madeira) para decorar estantes, dando eventualmente a falsa idéia, de seu dono ser uma pessoa de elevada cultura e erudição.

Ora, os livros guardados em estantes, quando não manuseados com frequência, se enchem de poeira, fungos, ácaros e outras coisas indesejáveis e deletérias ao papel. Requerem, por isso um manuseio preventivo, de tempos em tempos, o que é uma tarefa meticulosa, porém incômoda.

Felizmente, no presente momento do avanço da tecnologia, vários atenuantes desses problema vêem influenciando.

Por um lado, mesmo intuitivamente, ou para evitar o acúmulo e suas consequências, algumas pessoas, vejo cultivando o hábito de reciclar livros, passando-os adiante após a leitura ou a utilização como material de consulta, contribuindo, assim, para universalização dos conhecimentos neles contidos. Trata-se de ato meritório a ser imitado!

Bibliotecas abertas ao público e bem estruturadas são excelentes locais de destino. Nelas, o avanço da biblioteconomia começa a dota-las de renovável tecnologia de conservação dos livros “in natura”, para servir como futuras relíquias, além de transformar seu conteúdo em meio digitalizado, portanto muito mais acessíveis a todos, e simultaneamente, com rapidez, conforto e simplicidade. Ao lado disso, algumas delas podem se capacitar para compartilhamento dos exemplares, que eventualmente tenham em excesso, com outras de menor porte, na periferia das grandes cidades ou em localidades mais remotas, funcionando como virtuais “bolsas” de livros (e conhecimentos).

Um terceiro, fator que crescentemente desencoraja o armazenamento “in natura” é o avanço da tecnologia, que facilita, cada vez mais, a consulta e acesso a arquivos digitalizados remotos. Aplicativos ("buscadores"), palavras-chave, etc.) nos trazem conhecimentos guardados remotamente, isentos das desvantagens da existência física, citados.

Lembro-me, com nostalgia, da dupla tristeza do meu pai, quando, premido pelas circunstâncias, precisou se desfazer de sua, como disse, respeitável biblioteca, doando-a fracionadamente aos mais variados destinos,  inclusive aos escoteiros da Bahia que usaram a doação para iniciar, postumamente, uma nova biblioteca, que, em sua homenagem, a batizaram com seu nome.

A primeira e maior dificuldade foi a natural saudade, ao se distanciar daqueles “amigos” que, durante tantos e longos anos, o acompanharam e ajudaram. Isto, por si só, me tocou muito! A segunda foi uma repetida rejeição daqueles que procurou. Rejeição não é sentimento confortável para ninguém! Tentou doar e até mesmo, transportar para diversas instituições. Alegou-se, falta de espaço, falta de quem realizasse uma triagem dos lotes, já homogeneizados previamente por ele, temor de contaminação do acervo pré existente, por eventuais novos fungos ou ácaros, obsolescência de uma ou outra obra, etc.. Cada negativa, um novo sofrimento! Concluiu por doar os últimos exemplares a um presídio, de onde não pode ter certeza de uma adequada utilização.

Mas, segundo me parece, ele fez a parte que lhe cabia, e se somente um, de todos os exemplares que andou distribuindo, vier a proporcionar novos conhecimentos a quem quer que seja, valeu a pena! Ele, de mais uma maneira, tentou libertar mais conhecimentos, na sua vida de professor

3 comentários:

  1. Dei também liberdade aos meus livros, mantendo apenas os de consulta e os que pretendo ler proximamente, além naturalmente de um outro que ter particular valor sentimental.
    Confesso que me senti mais leve ao perceber que isso representava a socialização de conhecimentos que eu, ingenuamente, estava negando ao mundo.

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  2. Muito bom.
    Espero contribuirmos, para o crescimento da prática de exemplos como o seu.

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  3. Também estou tentando me desapegar dos meus livros! Já doei muitos e, agora, vou distribuindo entre amigos e conhecidos. Sei que não vou poder levá-los comigo além-túmulo e prefiro ir dando um destino bom para eles... A tarefa é difícil, inclusive por apegos sentimentais, mas hei de conseguir!!! Bjs, ML

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